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Universo AICEPGonçalo Reis: “A RTP deixou de ser uma empresa problemática”

Gonçalo Reis: “A RTP deixou de ser uma empresa problemática”

O mandato do Presidente da RTP chega ao fim este mês. Em tempo de balanço faz auto-elogios pela sustentabilidade financeira do grupo de TV e rádio públicas e argumenta que a perda de quatro pontos de audiências em seis anos é a tendência geral da redução da importância dos canais generalistas de sinal aberto.

Na RTP, como em todo o sector empresarial do Estado, há um défice de autonomia e flexibilidade que impede a eficiência e a boa gestão, diz Gonçalo Reis, que já pôs de lado o aumento da taxa audiovisual.

Ao todo, esteve 11 anos na gestão da RTP. Que balanço faz destes últimos seis anos como presidente?

O ponto fundamental é que a RTP deixou de ser uma empresa problemática e é agora uma empresa previsível, com propósitos claros, uma estratégia definida, ativa no mercado e com sustentabilidade financeira.

Essa sustentabilidade financeira vai transformar-se em que números em março?

Em excelentes números, mesmo num ano de pandemia, mas não estão fechados. Foram seis anos de resultados operacionais acima de dez milhões de euros, de resultados líquidos sempre positivos e inclusive de redução de dívida — e isso é um feito raríssimo no universo estatal e único na RTP.

Se tem lucros, por que pede aumento da contribuição audiovisual?

Eu não peço nada, eu relembrei a lei que prevê a atualização de acordo com a inflação. Sejamos realistas: apesar de a lei o prever, acho que não há enquadramento no contexto atual de pandemia, de exigência às famílias, para aumentar o financiamento à RTP. Durante seis anos, a RTP apresentou resultados positivos com alargamento do serviço público com muita inovação. Lançou a RTP3 e Memória na TDT, os arquivos históricos online, fez a Eurovisão em Lisboa, aumentou o apoio à produção independente, ativou a RTP Play e RTP Palco. E isso foi possível graças a uma lógica de gestão eficiente.

E do que a RTP precisa mais?

As pessoas falam do financiamento, mas esse não é o ponto mais crítico da RTP. Seria importante que o funcionamento da RTP, como todas as empresas públicas, tivesse uma lógica de gestão, de flexibilidade, de desburocratização, de capacidade de gestão de recursos humanos adequada.

E essa autonomia não existe.

Não existe nem para a RTP, nem para o sector público empresarial. Se tivesse os instrumentos de gestão que lhe permitissem ter políticas mais orientadas ao desempenho, ao mérito, à produtividade, que lhe permitissem recrutar talento mais jovem, polivalente e económico, poderia prestar os mesmos serviços com mais inovação e com custos mais baixos. É uma reforma que está por fazer em todo o sector empresarial do Estado. É normal que uma empresa que nos últimos seis anos apresentou sempre lucros, reduziu a dívida e que fez rescisões amigáveis de 200 pessoas em paz social e quando precisa de contratar um engenheiro ou um jornalista necessita da autorização de dois ministros?

Houve uma quebra muito acentuada na receita publicitária por causa da pandemia? Caímos menos que o mercado, o que mostra um bom desempenho das equipas comerciais. Houve poupança em grelha e no funcionamento (horas e viagens) porque houve grandes eventos que não se realizaram, como o Euro e os Jogos Olímpicos; e as 7 Maravilhas e o The Voice foram reformatados. Mesmo assim, conseguimos incluir um pacote de apoio extraordinário às indústrias criativas e à produção independente, com mais encomendas e antecipação de tesouraria — e esse é também o papel da RTP de servir de base de suporte ao mercado.

E séries?

Temos sequências de séries e coproduções, pensadas desde o início para mercados internacionais, aumenta o ticket, o orçamento, a ambição e a qualidade. Por exemplo, a Auga Seca, com a TV Galiza, foi vendida à HBO e a segunda temporada já é uma coprodução da HBO. Temos também contratos com a Netflix para a série original Glória e outros com a Amazon. Houve realmente um salto quantitativo e qualitativo de produção das séries. A RTP é o motor do sector audiovisual, porque as séries estimulam uma fileira de guionistas, atores, produtores, distribuidores. E nothing succeeds like success.

Mas quando esses conteúdos chegam à antena, não têm as audiências que correspondem a essa qualidade. A RTP continua no patamar de 12%. Não é frustrante?

Não, é um patamar sólido, que no conjunto dos canais da RTP é relevante. Em relação às audiências, eu digo que vale a pena ver quantos vêem o quê. Se nos focamos apenas na questão dos quantos vêem e desfocamos do quê, não estamos a dar a boa solução. Era possível aumentar as audiências com menos qualidade e também era possível fazer mais qualidade danificando totalmente as audiências. Acho que as direções de conteúdos encontraram o bom equilíbrio nessas duas variáveis.

Não o preocupa ter recebido a RTP1 com 16% e deixá-la um quarto abaixo?

Não. Isso acontece num mercado internacional e em Portugal. Há uma fragmentação e o free to air está a perder audiências há anos. E vai continuar, por isso, a aposta tem de ser no digital. Estamos muitos ativos: lançámos a RTP Play, o RTP Lab com ficção alternativa nativa digital, a RTP Palco para as artes performativas, entrámos na atividade dos e-sports com a RTP Arena. Temos de trabalhar essa tendência e ir atrás dos públicos mais jovens, mais móveis, mais presentes nas plataformas digitais.

E o que se passa com a RTP2? Está a rondar o 1%, é o valor mais baixo de sempre.

A RTP2 tem uma programação de enorme qualidade, com uma enorme identidade, acrescenta ao panorama, cobre áreas que mais ninguém cobre — património, documentário, séries europeias.

Mas precisa que alguém a veja…

Tem as vantagens e desvantagens de um produto com alguns toques de elitismo, com público que não é mass market. A orientação que damos à direção da RTP2 é manter uma lógica de produto de grande qualidade com personalidade própria. A RTP tem a 1, 2, 3, Internacional, África, Memória, todo o universo da rádio e do digital: temos obrigação de olhar para o portefólio todo e assumir que alguns desses canais ou serviços são mais bem-sucedidos em audiências e menos distintivos e outros serão mais distintivos e cobrindo públicos mais restritos.

Como as touradas. Devem manter-se?

A RTP tem feito um caminho equilibrado, ponderado e muito razoável, e aquilo que a direção de programas tem feito é manter as touradas, mas com menor intensidade.

E vão ter obrigações de mais canais na revisão do contrato de concessão.

Vamos ver. A empresa não propôs novos canais [foi o Governo]; aquilo que propõe é que as áreas de conhecimento, infantil, de comunidade e digital sejam trabalhadas e desenvolvidas. Não tem necessariamente que ser com novos canais. É preciso fazer uma reflexão: a RTP deve cobrir as áreas do conhecimento, infantil e comunidades com novos canais ou deve reforçar a programação dos canais atuais? Deve fazê-lo na TDT ou nas plataformas digitais, indo ao encontro dos hábitos dos públicos mais jovens? Há aí um trabalho a fazer com as direções de conteúdos da RTP no sentido de ver quais os propósitos destas ofertas, público-alvo e conteúdos e obviamente qual a viabilidade económica. É preciso estudar. Literalmente.

A TV é o navio-almirante, mas qual é o futuro da rádio pública?

Há projetos de investimento, discriminámos positivamente a radio com renovação de estúdios, equipamentos de mobilidade, funcionalidades a nível do visual radio. O futuro da RTP é de convergência, de crescente articulação entre digital, rádio e TV, de articulação, projetos comuns, mas mantendo a especificidade e identidade editorial de cada antena e serviço. E o navio-almirante não deve ser a TV, deve ser o digital.

Antes de ser presidente, foi crítico do modelo de governação e do CGI. Ainda se revê nessa apreciação?

De todo. O CGI incutiu-me sempre a máxima autonomia com a máxima responsabilização.

O CGI vai escolher a administração através de uma empresa de head hunters. Tem vontade de continuar no cargo?

Não. Julgo que este tipo de instituições beneficia de um equilíbrio saudável entre estabilidade e renovação. Já contribuí para a estabilidade ao fazer o mandato mais longo dos últimos 50 anos. O meu ciclo termina aqui: o meu mandato e o meu projeto estratégico terminam. Tenho a noção de dever cumprido.

Fica até março para fechar contas…

É uma questão de regras, sim. Quero fazer tudo de forma programada, com total serenidade.

Admite que esse prazo possa ser mais longo?

O novo contrato de concessão ainda está em discussão… O contrato de concessão, tendo impacto para os quatro anos seguintes, deve ser assinado e assumido pela futura administração. Eu cheguei e tive tempo para trabalhar na revisão do contrato de concessão e é assim que deve ser.

Anteontem, foi noticiado como candidato do PSD para a Câmara de Lisboa em 2021. Isso tem algum fundo de verdade? Foi sondado?

Não tem fundamento, não há cenário nenhum, não houve diligência nenhuma. Estou concentrado nas minhas funções de gestor até ao fim do mandato. Sou gestor e após a RTP pretendo regressar ao sector privado.

O contrato de concessão deve aumentar ou aliviar as obrigações de serviço público?

Não tenho uma resposta uniforme. O contrato de concessão deve contribuir para a relevância da RTP, do serviço público, cobrindo as áreas que são decisivas na sociedade atual.

O seu auto balanço como gestor financeiro é positivo. E em termos de imagem da RTP?

A perceção que o cidadão tinha da RTP como uma empresa problemática, instável, que às vezes cumpria e outras não cumpria, que às vezes tinha bons resultados e outras não, que às vezes fazia serviço comercial e outro serviço cultural… julgo que essa imagem de instabilidade foi substituída por uma de previsibilidade, de propósitos claros, de estratégia definida.

Isso é como gestor. E como espectador, qual foi a perceção que passou, sobretudo nestes dois anos, das substituições das direções de Informação?

Estatisticamente, as direções de conteúdos na minha presidência foram as mais longas dos últimos 20 anos, por isso estabilidade houve. Imobilismo, não. A RTP é um player ativo no mercado, com papel relevante com capacidade de experimentação. E quem experimenta, lança novas iniciativas, muitas vezes tem que corrigir o tiro.

Está a incluir aí a substituição da direção de Maria Flor Pedroso?

Os processos de substituição de direções na RTP têm sempre impacto. Porque a RTP tem impacto e mexe com os portugueses. As direções de Paulo Dentinho e Maria Flor Pedroso tinham qualidades, atributos, e agora está muito bem entregue a António José Teixeira.

O CGI foi visto como uma espécie de portão entre a RTP e os Governos. Mas houve episódios de dúvidas sobre a influência do Governo…

As decisões sobre direções de programas couberam, cabem e vão continuar a caber à administração. São decisões relevantes e conversadas com os vários órgãos da empresa, mas cabem à administração. Em seis anos, trabalhei com Poiares Maduro, João Soares, Castro Mendes, Graça Fonseca, Nuno Artur Silva e o posicionamento e estratégia da RTP nunca mudaram com a rotação dos Governos e nunca foram definidas externamente.

Isso foi a administração. E as direções de Informação?

Exatamente a mesma coisa [repete seis vezes]. Foram anos de autonomia de gestão, de não interferência dos Governos.

É mais fácil falar com o Governo tendo do lado de lá Nuno Artur Silva, com experiência na casa?

Conhece o sector e a RTP e isso é um ponto positivo. Mas eu não queria distinguir… Nestes seis anos lidei com uma série de responsáveis governamentais, todos fizeram o seu melhor, todos têm competências específicas e, ao contrário do que as pessoas julgam, para o posicionamento, para o dia-a-dia e estratégia da RTP, a posição dos governantes hoje é muito menos relevante do que se julga. A RTP atua num regime de enorme independência.

Dezembro 2020

Público

Foto RTP

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